Conheça o craftcore, tendência artesanal que promete permanecer em destaque no mercado da moda, e dois projetos brasileiros especiais que valorizam o feito a mão: Ateliê Mão de Mãe e Aparaitinga.
foto: Hope Macaulay
Sem dúvidas, grande parte das pessoas pensaram em se aventurar no “do it yourself” durante a pandemia. O tie-and-dye, as customizações e até os casacos de tricô que antes eram vistos como “coisa de vó”, voltaram com tudo já em março de 2020, e diferentemente das centenas de tendências passageiras que surgiram nas redes sociais, essa parece que veio para ficar. O craftcore, que na tradução livre seria “habilidade fundamental”, é acima de tudo, caracterizada pelo trabalho artesanal, feito manualmente, e pela ressignificação de peças já existentes, seja pela customização, upcycling ou patchwork. Além do estilo, essa tendência se tornou fonte de renda para diversas pessoas que se viram desempregadas em meio a pandemia e tiveram que se reinventar para sobreviver.
O Covid-19 trouxe para o mercado da moda o botão de “stop” que ele não sabia que precisava. Com a velocidade das lojas fast fashion e da produção em massa, o mercado estava se sufocando para suprir essas demandas e até perdendo sua essência, fazendo roupas descartáveis que logo perdiam o seu valor. O respiro dado pela paralisação total em 2020, quando as fábricas e lojas fecharam, fez com que o feito a mão fosse valorizado, não só pelas grandes marcas, mas pelos consumidores, que buscaram um passatempo e até certo aconchego em época de distanciamento social. Essa sensação foi proporcionada proporcionada pelas peças do “faça você mesmo”.
Diante do hobby, o crochê, bordado e trançado viralizaram nas redes sociais favoritas da Geração Z, como TikTok, Instagram e Twitter. As inspirações foram as mais diversas, e essa população nascida entre 1995 e 2010, acelerou o processo do craftcore de se tornar uma grande tendência, deixando de associar o trabalho manual como algo sem valor ou ultrapassado, pelo contrário, os jovens de hoje viram nesse lugar uma possibilidade de busca pelo estilo próprio e customizado, que entrou no lugar da perdida interação presencial. O conforto, a versatilidade e a exclusividade fizeram com que o artesanal fosse a peça da vez, fugindo desse mundo acelerado que antes era estabelecido.
Além disso, especialistas mostram que o trabalho artesanal é um grande aliado para reduzir o estresse e o nervosismo do dia a dia pandêmico. Sustentabilidade também pode ser discutida dentro desse tópico, já que uma das premissas do craftcore é transformar algo que você já tem. Assim, também podemos citar outra tendência que pode ser associada às necessidades da pandemia, o upcycling, que por conta da paralisação das fábricas de tecido, fez com que os designers recorressem ao que já existia nos estoques e estava sem destino, ressignificando as peças e entrando de cabeça na prática.
Nas grandes marcas também vimos o reflexo da tendência. A JW Anderson percebeu o poder da valorização do feito à mão e estimulou seus seguidores a literalmente copiarem uma peça exclusiva da marca pelo DIY. Um cardigan usado pelo cantor Harry Styles foi ensinado no canal do YouTube da grife para que os fãs pudessem reproduzi-lo no conforto de suas casas. Anna Sui, Chloé, Celine, além de claro, o próprio JW Anderson que já tem essa essência, investiram nas tendências artesanais nas últimas temporadas, seja por meio da aparição de suéteres de crochê ou pelo patchwork, como no outono-inverno 2021 de Celine.
foto: reprodução do famoso cardigan JW Anderson
Por outro lado, apagando todo resquício de sustentabilidade e reaproveitamento de materiais da trend, Demna Gvsalia, diretor-criativo da Balenciaga, lançou a bolsa "Sneakerhead", que simula ser feita de pares de tênis destruídos - conceito que já tinha sido utilizado por criadores menos badalados, que realmente reaproveitaram os materiais e inovaram com o craftcore.
foto: bolsas feitas de tênis de Sarah Elise
No Brasil, apesar de nas passarelas termos nomes como LED e Isaac Silva com peças handmade feitas de fibras naturais, sabemos que muitos artesãos locais enfrentam a desvalorização do seu trabalho. Um dos patrimônios culturais do sertão nordestino é justamente o trabalho com renda e bordado, que é um atrativo para turistas da região. Nesse caso, podemos até citar o mestre Espedito Seleiro, que é um dos maiores símbolos da cultura cearense e se consolidou por meio do trabalho artesanal em couro e camurça, que resiste desde peças criadas para o forasteiro Lampião. A carga cultural e histórica é imensa, e deve ser cada vez mais devidamente valorizada e amplificada para que o mundo conheça criadores com tamanha potência.
Fazendo parte da mudança
Pensando na necessidade de trazer renda para as comunidades tradicionais, a antropóloga Ruth Cardoso fundou a Artesol, uma organização que acredita no potencial do artesanato como gerador de renda para comunidades vulnerabilizadas. Na segunda edição da Unsatisfashion, revista produzida pela Fashion For Future, Josiane Masson, atual diretora do projeto, conta mais sobre os propósitos da instituição que ajuda e divulga centenas de projetos artesanais Brasil afora, cada um com uma história única. Além do mais, alguns desses foram mapeados pela estilista Luma Guarçoni na mesma publicação.
De olho em todo esse potencial, temos empreendedores brasileiros que divulgam e valorizam a arte do artesanato e estão cada vez mais crescendo no mercado.
O Atêlie Mão de Mãe é uma dessas iniciativas. Selecionados pelo Projeto Sankofa - de coautoria do movimento Pretos na Moda e da start-up VAMOS - a nova grife vai estrear na próxima edição do São Paulo Fashion Week, que acontece entre 23 e 27 de julho no formato digital. A maior inspiração de Vinicius Santana, um dos fundadores do ateliê, é sua mãe, Luciene Brito: “No início da pandemia, minha mãe veio morar comigo, e ela sempre viveu de arte, fazendo crochê, filtro dos sonhos, artesanato em geral… Foi aí que decidi junto com ela criar uma página no Instagram para comercializar essas peças”, conta ele em entrevista à Fashion For Future.
foto: Ateliê Mão de Mãe
A ideia, que foi um sucesso, surgiu em meio a pandemia, e se tornou uma alternativa em meio ao desemprego. As peças de crochê, que estão fazendo grande sucesso dentro e fora das redes sociais, já foram usadas por diversas celebridades, entre elas, as atrizes Fernanda Paes Leme e Adriane Galisteu. “Sem dúvidas a nossa maior inspiração é a ancestralidade. Nosso processo criativo é um mergulho na religião de matriz africana e na nossa cidade de Salvador. Fazemos uma pesquisa minuciosa para buscar referências”.
Por trás do talento de Luciene, também existe um propósito: o de valorizar a arte das mulheres artesãs que lutam por reconhecimento. “Para nós do AMM é extremamente importante valorizar, profissionalizar e inserir esses artistas ainda mais no mercado de trabalho, trazendo inclusão social e curadoria de como se posicionar diante dele” explica Vinicius, que complementa mostrando a importância do Projeto Sankofa ao eleger 8 marcas de empreendedores radicalizados para mentorear: “Ocupar espaços nunca antes ocupados por afro-empreendedores é algo muito maravilhoso. O projeto impactou muito no nosso desenvolvimento enquanto marca, pois tínhamos um produto muito bom, muito assertivo... Mas ele nos abriu horizontes, trazendo visibilidade dos grandes meios de comunicação e obviamente trazendo outros consumidores finais”.
foto: Ateliê Mão de Mãe
Propósito que também é observado no DNA da marca de Helena Saad, a Aparaitinga, que conta que o projeto surgiu de forma muito espontânea, ao juntar o talento de duas mulheres que já conhecia com a sua vontade de trabalhar com moda e fazer a diferença. A marca que nasceu no interior de São Paulo, em São Luís do Paraitinga, produz tricôs, bichinhos de crochê, acessórios, e logo começou a chamar atenção de outras moradoras que tinham talentos artesanais e também precisavam de uma renda com maior estabilidade, "várias mulheres que tinham filhos pequenos e não podiam sair de casa porque não tinham com quem deixar o filho, acabavam trabalhando na Aparaitinga para garantir uma renda segura”, conta Helena, que aos poucos foi formando um coletivo de artesãs da cidade onde costumava passar férias, no intuito de garantir a independência financeira e o resgate da autoestima por meio do trabalho artesanal.
foto: Aparaitinga
Assim, a fundadora viu a necessidade de especializar cada vez mais a equipe, pois acredita que, “além delas aprenderem, elas precisam ensinar umas às outras, como forma de empoderá-las”, e com isso em mente, cursos semanais foram ministrados pelas próprias artesãs. Helena também conta que quando a marca começou a “deslanchar”, as mulheres que antes eram dependentes de uma renda externa, que muitas vezes vinha de uma figura masculina, começaram a realizar feitos até então muito distantes, “algumas colocaram internet em casa, compraram celular, uma delas está até construindo a casa própria com o dinheiro do projeto, pensaram em coisas que não faziam parte da realidade”, relata a idealizadora do projeto, que complementa, “quando você dá a oportunidade, você muda a cabeça das pessoas”.
Curso de Alta Formação Moda + Artesanato
De setembro a dezembro de 2022, a Fashion For Future vai oferecer um curso exclusivo para tratar do artesanato na moda em 360 graus. Antropologia, sociedade, direito, design, patrimônio são alguns dos temas tratados nesta oportunidade única. Para saber mais, entre no link do curso.
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