É muito comum pensar sobre o artesanato como uma característica da moda, com técnicas milenares como o bordado, o macramê, as rendas, etc., mas como pensá-lo junto ao design?
Cadeira Multidão, Irmãos Campana
Até há algum tempo, quando a influência do movimento modernista era muito resistente, tínhamos a funcionalidade como personagem principal e como justificativa para a existência de grande parte dos objetos, porém, agora, as coisas são diferentes: mas como e por que, você pode se perguntar.
A personalidade, o conforto, a sustentabilidade e a singularidade entram em pauta, e não necessariamente pensamos mais na função quando falamos de design contemporâneo, apesar da indiscutível importância dessa dimensão. “O modernismo via o ser humano de uma maneira massificada: o “homem-tipo” – cuja personificação mais famosa talvez esteja no Modulor, de Le Corbusier – tinha medidas-padrão, necessidades-padrão, e por isso uma resposta padronizada teoricamente também atenderia a todos. Se no design moderno, a máxima do “a forma segue a função” era uma lei intocável, na contemporaneidade a função continua a ser importante, obviamente, mas será que ela ainda se mantém no topo dessa hierarquia quando falamos em requisitos de projeto? Será que a execução “perfeita”, mas impessoal, vale mais do que aquela “imperfeita”, mas com alma?”, questiona Winnie Bastian, arquiteta que atua há mais de 20 anos como jornalista especializada em design, que já passou por nomes como a revista L+D, Casa Vogue e atualmente tem o blog Design do Bom.
Assim, quando essas características entram em cena, é preciso pensar em novas técnicas, que reflitam exatamente essas tendências e desejos dos novos e futuros consumidores. Nada mais artesanal do que a produção “com alma”, analisa Winnie.
Para contextualizar, a valorização do artesanato começou na Idade Média, mas com a industrialização e os sistemas de produção em massa acabou se perdendo e esvaziando-se de sentido, já que muitas vezes foi visto como algo ultrapassado e não tecnológico, por exemplo. Quando se referimos ao artesanato, podemos pensá-lo de diferentes maneiras: com pegadas mais tradicionais ou de forma a garantir a sustentabilidade e a importância na cadeia. Ou seja, por mais que a expressão artesanal pareça algo restrito à manufatura humana e a técnicas ancestrais, o artesanato é versátil e e pode se fazer presente de diversas maneiras em um produto. Quer saber mais informações e contextos sobre o artesanato na história da moda? Confira o e-book completo: 'O artesanato e a moda'.
Artesanato tradicional: a relação entre o produto e o artesão
Quando falamos de processos artesanais, estamos nos referindo a objetos e criadores singulares, que possuem total domínio sobre o processo criativo e pensam cada produto individualmente, criando essa conexão humana com a manufatura - o que está tão raro hoje em dia. Se atualmente os processos produtivos estão tão acelerados e o consumidor é visto única e exclusivamente como uma máquina de dinheiro, o artesanato é o suspiro que temos no meio desse ritmo frenético do produzir e consumir.
Também podemos pensar no valor material e imaterial do artesanato, uma vez que a produção de baixa escala garante a exclusividade, e a conexão humana traz de volta produtos que cada vez mais estão sendo “apagados” pelo ritmo do mercado. “Em todos os estados brasileiros existem expressões artesanais muito únicas, e muitas vezes por falta de reconhecimento ou atenção não olhamos para aquilo que está perto da gente. A partir dessa relação com o artesão podem surgir criações muito autorais e significativas. A produção artesanal brasileira por si só já é uma mistura riquíssima, e quanto mais a gente se aproxima das peças, mais a gente descobre detalhes da nossa própria história, seja como indivíduos, mas também como a história do próprio país.” explica Helena Kussik, mestre em antropologia social que também é formada em design de moda e atualmente dedica-se ao trabalho com artesãos.
Além disso, é preciso pensar na situação dos artesãos no Brasil, e como essa atividade muitas vezes é o ponto de virada para muitas pessoas. “Quando falamos de artesanato tradicional, a gente está falando de uma parcela muito expressiva de artesãos localizados em zonas rurais, onde o artesanato é uma atividade cotidiana, doméstica, que aparece como fonte única ou complementar de renda, então, além dessa troca, existe esse contexto socioeconômico que precisamos prestar atenção”.
Atualmente, de acordo com dados do DataSebrae, cerca de 80% da produção artesã é feminina, e é uma atividade essencial para a emancipação financeira que proporciona não só renda própria, mas também resgata a autoestima e a emancipação de centenas de mulheres no país. “O artesanato passa a ser uma ocupação profissional que gera uma autonomia financeira muito importante, além de um reconhecimento social também. Quando a mulher conquista essa autonomia, essa passa a ter domínio do que ela produz, da circulação dos produtos e de com quem ela está se comunicando” complementa Helena, que também enfatiza o reconhecimento internacional de muitos movimentos artesãos brasileiros.
O artesanato como inovação e potencializador do design
Nessa sociedade tão industrializada, onde dizem que o futuro pertence aos robôs e à inteligência artificial, é possível pensar que o artesanato seja algo ultrapassado, antigo, ou não tecnológico?
“Acredito que uma diferenciação que precisamos ter muito clara é que o “antigo”, quando falamos em artesanato, está ligado muitas vezes à existência de um conhecimento ancestral, mas passa longe de ser uma prática “ultrapassada”. Ao contrário, hoje percebemos que muitas das técnicas artesanais são mais sustentáveis, por exemplo, para a produção de certos itens do que a fabricação industrial. Por outro lado, será que artesanato e tecnologia são incompatíveis? Não acredito que um elimina o outro, mas podem se complementar de modos bem interessante. Há, inclusive, casos em que as máquinas industriais simulam a execução artesanal - com pequenas imperfeições, por exemplo,” nos conta Winnie Bastian, que também destaca a importância da conexão humana nos processos e produtos artesanais: “É importante observar que a produção industrial é eficiente, mas normalmente anônima. Então quando vemos uma peça de roupa ou um objeto que carrega a marca da mão de quem o executou, subliminarmente isso nos remete à presença de uma pessoa por trás daquele produto. E numa época tão pautada pelo uso massivo da tecnologia e da inteligência artificial, humanizar o objeto é algo muito bem-vindo, não acha?”
Além de inovador, como ressaltado por Helena Kussik, o artesanato potencializa projetos, empreendedores e marcas que buscam ser mais transparentes e buscam um propósito. “É cada vez maior o número de marcas que percebe o valor que o artesanato pode trazer em várias instâncias: da conexão com o consumidor (pela memória afetiva, por exemplo), da personalização/customização do produto, da sustentabilidade, da relevância cultural... Muitas já comunicam isso com orgulho, cientes da riqueza que seu produto incorpora com o processo artesanal. Mas por que não tirar ainda mais partido disso, dando visibilidade e reconhecimento aos artesãos?”
Todos esses debates e questionamentos são muito necessários para se pensar um mercado do futuro, além de valorizar a questão artesanal latino-americana. Pensando nisso, Winnie Bastian e Helena Kussik são parceiras da Fashion For Future no curso ‘Moda + Artesanato’ que acontece durante todo o mês de novembro. Pensar os elementos artesanais dentro da lógica do design, e a visão antropológica do trabalho humano, são alguns dos questionamentos que vamos pensar junto às convidadas.
Curso de Alta Formação Moda + Artesanato
De setembro a dezembro de 2022 a Fashion For Future vai oferecer um curso exclusivo para tratar do artesanato na moda em 360 graus. Antropologia, sociedade, direito, design, patrimônio são alguns dos temas tratados nesta oportunidade única. Para saber mais, entre no link do curso.
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